por PAULO GARCIA
Introdução
O filósofo, sociólogo e economista alemão, Hans-Hermann Hoppe, ao longo de sua carreira como escritor, muito escreveu, abordou, detalhou e expandiu o conhecimento e as bases da escola austríaca de economia, desde os marginalistas até Ludwig Von Mises e Murray Newton Rothbard, seu mentor.
O texto baseia-se em dois livros seus, “A Ciência Econômica e o Método Austríaco” e “Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo”, com intuito de apresentar e explicar, de forma direta e palatável as construções e influências epistemológicas da praxeologia, o método econômico da escola austríaca, como é trazido por Hoppe nos títulos citados.
As fontes de leitura nas notas de rodapé, em sua maioria, serão dispensadas, uma vez que o artigo se concentra em diversos parágrafos e páginas de “Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo”, capítulo 6 e 7; e todo o conteúdo de “A Ciência Econômica e o Método Austríaco”.
O empirismo-positivismo e suas reivindicações centrais
A filosofia do empirismo é a vertente da epistemologia conhecida por retirar o seu conhecimento através das observações do mundo. Tal metodologia passou por grandes pensadores, adaptações e algumas mudanças fundamentais e se tornou mais consolidada a partir do “Empirismo Britânico”. Hoje, como descreve Hoppe [1], o empirismo-positivismo reivindica necessariamente só existirem proposições analíticas ou empíricas. Partindo dessa premissa, possui duas proposições estritamente relacionadas.
Segundo o empirismo, o conhecimento sobre a realidade ocorre de modo unicamente empírico. Ou seja, deve ser possível verificá-lo e falseá-lo através da experiência. Esta, por si só, leva ao conhecimento causal, uma vez que o resultado da experiência pode ser diferente do que foi anteriormente. Tal afirmação implica que nenhum resultado pode ser previsto antes que a experiência seja testada empiricamente.
Na primeira reivindicação, caso a proposição não possa ser verificada e falseada empiricamente, ela recebe a classificação de conhecimento analítico. O conhecimento analítico se limita a palavras, sinais e regras transformacionais. Para essa posição empirista, é completamente duvidoso que sequer tais proposições possam ser consideradas conhecimento.
A segunda premissa empirista é uma aplicação da primeira, o método de análise sobre a causalidade. Para o empirismo, explicar ou prever causalmente um fenômeno é reivindicar “se A, então B”. Ou caso seja possibilitada comparação e medição, “se um aumento (ou diminuição) de A, então haverá um aumento (ou diminuição) de B”.
Uma vez que todo conhecimento sobre a realidade deve necessariamente ser verificado e falseado, toda declaração sobre a realidade é hipotética e, por isso, uma validade sobre o que é real não pode ser estabelecida com total precisão. A veracidade de qualquer hipótese sempre está sujeita a testes futuros, cujos resultados podem não ser previstos ou obtidos anteriormente. Se A seguir B, nada é totalmente conclusivo, uma vez que experiências futuras podem refutar a hipótese anterior. E caso A não siga B, pode-se reformular a hipótese, alegando o resultado – indesejado – como causado por alguma variável isolada ou negligenciada. Assim, para que A siga B, basta refinar o teste – minimamente que fosse –, e então, o resultado esperado aconteceria.
Hume e outros empiristas admitiram ser impossível vincular visivelmente qual variável possuiria, ou não, influência de causa e efeito em um teste, por mais absurdo que fosse essa possibilidade de influência. Portanto, toda e qualquer variável deveria ser considerada e testada. Como para o empirismo nada pode ser definitivamente estabelecido, e tudo pode ter influência – o que deve ser descoberto por testes, nunca fornecendo respostas definitivas –, fica muito clara a rejeição ao conhecimento a priori, em principal o sintético a priori [2].
Sob a ótica empirista-positivista, quaisquer reivindicações a priori são, em si mesmas, meros sinais arbitrários, por estipulações e definições arbitrárias, que não dizem nada sobre a realidade. Sendo assim, sistemas de sinais só poderiam ser empíricos, ou seja, trazer informações sobre a realidade, caso uma interpretação empírica seja correlacionada a tais símbolos.
Para finalizar, acrescentamos superficialmente: para o empirismo não existe uma diferença categoricamente fundamental entre explicação teórica e explicação histórica. Com o intuito de explicar um fenômeno, supõe-se que outro o cause, e a devida procedência da hipótese é verificada com o tempo. Sendo assim, a única diferença realmente significativa derivaria de ato segundo o qual a explicação histórica é sobre algo ocorrido e a teórica seria uma previsão incerta sobre algo que poderia vir a ocorrer, que ainda não ocorreu.
A implosão empirista
A formulação inicial dos empiristas expõe-nos a diversas refutações conclusivas, apresentadas de forma que passemos a (1) reivindicar novamente a existência do conhecimento a priori e (2) utilizar da lei da não contradição – que é apriorística. Voltemos à reivindicação central, só existem proposições empíricas – necessariamente passíveis de verificação e falseamento – e analíticas – que é mero conhecimento sobre a linguagem, quase completamente irrelevante para a realidade. Então, questiona-se, a reivindicação central do empirismo é uma proposição analítica, ou empírica [3]?
Caso analítica, o próprio empirismo passa a afirmar que sua reivindicação central é apenas um grande conjunto de arbitrariedades vazias, sem conexão com a realidade e inviabilizado a partir de si próprio. Hoppe, na refutação apresentada, define que o empirismo sequer pode dizer e significar aquilo que ele próprio alega dizer e significar. E caso os empiristas insistam que seja analítica, e ainda assim continue dizendo algo sobre a realidade, encontra-se em inegável contradição.
Para que digamos algo, um significado, para ser interpretado, deve ser dado segundo os termos utilizados. Por razões práticas, significados de termos são atribuídos a partir de exemplos reais. Sendo assim, a conexão estabelecida entre um termo e a realidade, é feita pelo conceito dado a ele. A partir disso, até mesmo para que se formulem as proposições que são premissas do empirismo, e se crie e interprete as hipóteses sobre o mundo real, o empirismo não pode negar que claramente queira dizer algo sobre a realidade. Tal fato encaminha, inevitavelmente, o empirismo de reivindicação analítica para a contradição mostrada.
E caso a proposição do empirismo seja empírica? Primeiro, ela cai nas incertezas da própria doutrina. E em segundo, pressupõe existir de fato o conhecimento a priori. O que quero dizer é que a reivindicação empirista, sendo empírica, poderia estar totalmente errada. Se manteria em status de hipótese, uma vez que ela poderia ser verificada e falseada, nunca sendo definitiva. O máximo que a afirmação central do empirismo poderia alegar é sobre o conhecimento até o agora, até o momento atual. Mais precisamente, se torna algo como “todas as proposições, até o agora, podem ser validadas em duas categorias: analítica ou empírica”. E assim, se torna totalmente irrelevante a questão da possível existência do conhecimento válido a priori.
Outro grande problema exposto por Hoppe, uma vez que diversas interpretações podem ser dadas e falseadas, o empirismo também deixa de se tornar uma epistemologia para ser apenas uma convenção verbal totalmente arbitrária, de se nomear arbitrariamente modos arbitrários de lidar com certas declarações. O empirismo passaria a ser desprovido de justificações racionais – pois suas reivindicações centrais seriam falseáveis e, se não fosse, nada diria sobre a realidade.
O que foi apresentado até aqui prova o erro do empirismo enquanto análise sobre o conhecimento em geral – a partir de argumentos apriorísticos. Por consequência, também revela que a relação entre teoria e história, como afirmam os empiristas, está equivocada. A partir do fato que elementos apriorísticos devam ser acrescentados ao assunto, torna-o diferente do que o empirismo sustenta primordialmente.
Como dito, se houver uma declaração empírica, pressupõe-se a existência de conhecimento a priori. Para esta compreensão, deve-se analisar a própria metodologia empirista. Em um segundo teste, para refutar ou validar uma hipótese sobre um experimento anterior, presume-se que existam causas constantes que não variam conforme o tempo [4]. Caso contrário, um segundo experimento, em um tempo diferente, seria avulso ao primeiro experimento, i.e., seu resultado, sendo diferente ou igual, seria admitido sem nenhuma ligação com o resultado do anterior. Para que um teste tenha sequer a utilidade de falsificar ou validar outro, é necessária a admissão de um princípio da constância, i.e., pressupor que causas eficientes terão o mesmo efeito, independentemente do tempo em que sejam reproduzidas. Consequentemente, presume-se que o acaso não desempenhe função na forma em que as coisas agem.
O grande porém é que o princípio da constância não é dado, nem refutado, pela experiência, pois caso se faça uso de experiências para refutá-lo – que, consequentemente, seria propor provar a não relação entre um experimento duplicado – se pode assumir, pela premissa empirista, que o resultado seria apenas uma particularidade. Pela própria falseabilidade, não pode ser alegado impossível encontrar um resultado diferente do anterior ao fazer um segundo experimento, pressupondo suas causas como invariantes do tempo. A constância, nesse segundo experimento, seria pressuposta, não tendo como refutá-la.
Por fim, uma vez que o conhecimento empírico pressupõe o princípio da constância – um princípio não empírico sobre a realidade – como conhecimento válido, o empirismo se torna desprovido de validade em suas principais pressuposições epistemológicas. A falseabilidade pressupõe a constância. Por sua vez, a constância pressupõe a existência do conhecimento a priori.
O empirismo nas ações
Após a apresentação das contradições do empirismo, apresentamos o porquê de sua metodologia não ser aplicável também ao campo das ações. Aplicadas às mesmas reivindicações sobre as ações, afirma que podem e devem ser explicadas por hipóteses de causa e efeito, como afirmado, “se evento A, então ação B”. As hipóteses devem poder ser confirmadas ou falseadas por observações, também sempre de forma hipotética. Especificamente, sobre ações, busca-se explicar se determinado evento poderia ser, ou não, a causa de uma ação em particular.
Novamente, é pressuposto o princípio da constância, contrariando-se, como explicado anteriormente, pela falseabilidade. Afirma a existência de causas eficientes e intemporais governando as ações humanas. Também, que não se pode afirmar que evento A cause ou não a ação B antes de testado pela experiência. A partir desse ponto, não se pode saber a priori sobre a ação.
Ações seriam causalmente explicadas e estabelecidas, o que é necessariamente incorreto. Ações não podem ser explicadas de forma causal, da mesma forma como são explicados os fenômenos físicos. Isto porque uma das bases da ação é o conhecimento, o que é algo irrefutável. A negação dessa proposição pressupõe sua validade – pois utiliza-se de uma forma de conhecimento para propô-la. As categorias da ação, que abordarei adiante, também necessitam do conhecimento.
Não se pode negar também que somos capazes de aprender, e os empiristas devem admitir isso. Se os próprios explicadores, aqueles que realizam os testes, não fossem capazes de aprender, também não poderiam formular hipóteses, para que depois pudessem fazer experiências – nem duplicar o experimento –, com o intuito de confirmar ou refutar essas mesmas hipóteses depois. Portanto, para sermos capazes de assimilar experiências, pressupomos a capacidade de aprender.
Uma vez que somos capazes de aprender, não podemos saber o que saberemos futuramente, i.e., não podemos prever estados futuros do conhecimento. Caso contrário, saberíamos tudo, teríamos o dom da onisciência, e não seríamos capazes aprender nada novo.
Admitindo o que foi dito – válido a priori -: que 1) o conhecimento é requisito para agir, e 2) somos capazes de aprender com maneiras e experiências desconhecidas – assim não podendo saber o que viremos a saber no futuro; é possível entender o porquê do empirismo não poder ser aplicado sobre as ações, a partir de mais uma dedução.
Não tendo ciência de um dado do conhecimento futuro, também não se pode saber como se virá a agir sobre esse novo estágio de conhecimento, i.e., a partir de qualquer mínima informação ou mudança adicional. Portanto, deve-se considerar imprevisível o conhecimento e as ações baseando-se em causas eficientes constantes, uma vez que o que conhecimento de qualquer agente está em constante mudança – assim como seria diferente o conhecimento de um agente testado em dois momentos diferentes, em que são realizados os testes empíricos. Sendo impossível saber sobre um estágio de conhecimento sem já o possuir, também o é em relação a ação condicionada por ele. O empirismo falha ao tentar estabelecer, pela experiência, elementos e causas constantes sobre a ação humana.
Uma vez que não é possível prevê-los, equações e hipóteses preditivas, assim como a engenharia social, não possuem sentido ou função alguma. Como Mises afirmou “não existem causas empíricas constantes na ação humana”. A ciência social, diferente da ciência natural, não pode ser usada para fins preditivos sobre a ação. A história social e a econômica referem-se exclusivamente ao passado e seu estudo não possui influência sistemática sobre as ações em si, pois as pessoas podem aprender.
Hoppe aponta que toda ação possui uma infinidade de eventos precedentes. Diz que para que se saiba quais destes possuem ou não influência sobre uma ação, o empirismo diz: “tente prever e o sucesso ou fracasso dirá a resposta”. Essa metodologia de nada serve, pois, ações não podem ser concebidas ou governadas por causas eficientes e intemporais. Para a análise de uma ação, deve-se ter entendimento sobre os interesses, convicções, orientações normativas, aspirações do agente, além de percepções concretas resultadas dessa ação.
Brevemente sobre as previsões econômicas: elas devem ser delimitadas pelo conhecimento a priori da ação. Não se pode prever totalmente o que virá a acontecer, porém, pode-se restringir a gama existente de possibilidades e impossibilidades. Portanto, as previsões que estejam sobre instrução e delimitações praxeológicas tendem a ser mais bem-sucedidas em média. É importante ter em mente: não existem causas empíricas constantes no campo da ação humana.
Conhecendo o conhecimento a priori
Após apresentar o empirismo, suas refutações e sua incapacidade na previsão de ações, utilizando exclusivamente de deduções válidas a priori, torna-se novamente possível reivindicar a existência do conhecimento apriorístico. Para que se entendam todas essas categorias de conhecimento, é necessário abandonar o conceito de “ideias inatas”, ou intuitivo, que não devem ser descobertas. O que é válido a priori deve ser descoberto. Para entendimento dessas diferentes categorias de proposições e conhecimento, é necessário uma abordagem em Kant.
Immanuel Kant se tornou conhecido por sua distinção categórica de juízos propositivos e do conhecimento; além da reivindicação da existência do conhecimento sintético a priori. Mostrou que podemos classificar o conhecimento – ou as proposições – em duas categorias distintas: sintético ou analítico, e a priori ou a posteriori.
Analítico seria o conhecimento obtido apenas pela análise do significado das palavras. Por exemplo, a frase “triângulos possuem três lados”, ou a frase “não existem quadrados redondos” são frases em que o sujeito possui implicitamente a informação contida no predicado, o qual não acrescenta nada, pois triângulo é definido como um polígono de três lados, já quadrados possuem quatro lados e não são circunferências. Em um vocabulário mais específico: é provido de um auto entendimento tautológico. Nas proposições analíticas pode-se analisar informações através dos significados dos termos. Por juízos sintéticos, entendem-se aqueles em que coisas além dos significados das palavras, ou seja, mais do que a lógica formal em si, seriam necessárias para se obter conhecimento.
Kant definia o conhecimento a posteriori como o obtido e derivado unicamente da observação, da experiência. O conhecimento a posteriori é também chamado de conhecimento empírico [5] e é caracterizado por se referir principalmente ao mundo físico e às ciências naturais. Por conhecimento a priori, entende-se aquele obtido dispensando totalmente o uso da experiência para sua validação, i.e., opta-se pela dedução ao invés da indução.
Uma vez que conhecimento analítico é dado a partir da lógica formal, analisado através da definição de termos, palavras, sinais transformacionais e suas regras, as reivindicações analíticas são apenas a priori. Portanto, ao menos na epistemologia kantiana, não classificamos um “analítico a posteriori”. Já o conhecimento a posteriori é sintético, mas nem todo sintético é a posteriori.
O sintético a priori é especialmente questionado e igualmente importante, sendo a característica principal da epistemologia Kantiana. Nas palavras de Hoppe, são “proposições cujo valor veritativo pode ser definitivamente estabelecido, mesmo que para isso os valores da lógica formal não sejam suficientes, embora necessários, e as observações sejam desnecessárias”. A questão seria: como obter tal conhecimento – e seu valor verdade – enquanto não se devem usar as observações e a lógica informal seja insuficiente?
Kant propõe a dedução a partir de axiomas materiais autoevidentes. Não autoevidentes psicologicamente, mas sim de forma que, ao tentar refutar a validade desse axioma, iria pressupô-la, tornando esses axiomas irrefutáveis. Alegar sua invalidade seria uma contradição. Por sua vez, esses axiomas devem ser encontrados pela reflexão interna de nós como seres humanos, somado ao entendimento de sermos seres inteligentes.
Humanidade, linguagem e apriorismo
É a existência de seres que agem, manifestando comportamento proposital (intenção) e racionalidade, que torna possível descobrir campos de conhecimento, como também categorizá-los de formas distintas. Enquanto pela experiência observamos a natureza, é pela reflexão que passamos a entender propriedades implícitas da razão e do comportamento.
A experiência observável pode, no máximo, revelar as coisas da forma que são. A reflexão correta deve mostrar e entender o porquê de elas deverem ser necessariamente como são. Foi pelo fato de sermos seres pensantes e intencionais que a natureza deixou de se limitar à instintos e fenômenos físicos e químicos, para passar a ter construtos puramente humanos. Passamos a possuir elementos que não devem ser simplesmente observadas em questão de estruturas e implicações, mas também em método.
Hoppe aponta três principais campos de construtos do homem: (1) Linguagem e pensamento, (2) ações e (3) objetos fabricados. Os empíricos veem a linguagem como puros sinais convencionados, e a partir dessa visão, nada pode ser conhecido a priori sobre ela. É verdade quando se afirma que a linguagem é um sistema convencional de sinais. Mas o que é uma convenção? Não se pode definir convenção como uma definição puramente convencional, pois afirmar que algo é uma convenção logicamente pressupõe conhecimento do que é uma convenção. Ou seja, cada falante de uma língua, por mais que saiba que existem outras palavras e definições para se definir algo observável, pressupõe entendimento sobre o que é uma convenção.
O mesmo ocorre com “definição”. Não podemos definir o que é “definição” como algo já visto, mas, ao definir o significado de uma e de qualquer palavra, antes devemos ter ciência sobre o que é, e como definir algo. Para definir qualquer termo de forma convencional, cada falante deve saber a priori o significado do que é fazer uma definição.
O economista alemão aponta que o que deve ser considerado a priori sobre o conhecimento da linguagem, o que inclui outras linguagens, como de sinais, é o que é pressuposto por qualquer comunicante de uma língua. Criar convenções, formular uma proposição ao fazer uma afirmação – ou seja, como atribuir significado a algo ao dizer algo -, dar definições reais e identificar exemplos particulares de propriedades gerais. E o que foi dito agora é axiomático, pois, uma vez que se tente refutar isso, obviamente usando a linguagem, essas categorias da linguagem são todas pressupostas.
Uma breve citação e complementação do autor ao assunto é “A realidade é feita de objetos específicos e propriedades abstratas (das quais é possível encontrar outros exemplos). Portanto, existem objetos que tem ou não tem alguma propriedade definida, e, portanto, há fatos podem ser considerados como sendo o caso, verdadeiro ou errado. Não se pode conhecer a priori quais são todos os fatos, exceto que também devem ser realmente fatos, ou seja, exemplo de propriedades específicas abstratas”. Esse trecho demonstra que existem criações abstratas, vindas dos humanos, que possuem conhecimento a priori e fatos corretos e incorretos sobre essas criações.
Breves considerações sobre Mises e a epistemologia
Ludwig Von Mises afirmou que as proposições econômicas devem ser sintéticas a priori, justamente pelo fato que ela são feitas de ações humanas – cujo estudo, como mostrado, deve ser a priori. O método de estudo da ação humana seria propriamente a praxeologia. Assim sendo, essas proposições devem se basear na reflexão sobre as ações, além de cumprir os requisitos de um sintético a priori; dedutível e de um valor verdade não sujeito a verificação [6].
Hoppe afirma que Mises e a praxeologia levam a epistemologia de Kant para muito além de onde foi concebida. Os requisitos kantianos eram (1) que proposições sintéticas a priori, deveriam ser totalmente refletivas sobre nós mesmos, como seres pensantes e intencionais; (2) com proposições inteiramente independentes de futuras observações e (3) com deduções feitas a partir de axiomas autoevidentes. Também, dada sobre a existência de um argumento válido, que implica que Kant demonstra implicitamente um idealismo. Se as proposições sintéticas a priori, segundo Kant, demonstram necessariamente o funcionamento da nossa mente, como elas podem ser verdades definitivas sobre a realidade física e material? Isto é, a realidade é criada por nossa mente? Mises, através da praxeologia, afasta de sua teoria econômica qualquer implicação idealística.
Isso ocorre ao percebermos que essas proposições não são só fatos sobre a mente, que levam a características definitivas da realidade, mas que nossa mente está incorporada em indivíduos que agem. Portanto, estão fundamentadas nas categorias da ação. Substituindo o modelo de mente ativa por uma mente incorporada em um corpo que age, desaparecem as implicações idealísticas. O sintético a priori, então, ingressa em uma filosofia realística.
Entender que a ação é um ajuste cognitivo de um corpo físico na realidade material, i.e., a expressão da mente no mundo físico, ou nas palavras de Hoppe, “entendendo que a partir da ação, a mente e a realidade entram em contato”, entende-se que proposições sintéticas a priori podem ser tanto fatos da mente quanto fatos da realidade física em si.
Expõe, então, outra questão notadamente proporcionada por Mises, além desse reconhecimento e ao lidar com esse problema, o austríaco forneceu outro insight de extrema importância. Identificou a contradição como pilar essencial da lógica e de sua filosofia (sic). Além de guiar a epistemologia para o conhecimento refletivo da ação, percebeu que a ciência econômica faz isso mais diretamente. Assim, ela é condicionada e delimitada pelo entendimento refletivo da ação, e suas proposições passam a ser de uma categoria formada pela lógica (sic).
Desaparecendo o caráter idealístico dos juízos sintéticos a priori – do racionalismo de Leibiniz e Kant -, reconhece-se que o conhecimento é delimitado estruturalmente nas categorias da ação, algo mental e realístico. É o reconhecimento dos limitantes praxeológicos sobre a estrutura do conhecimento que permite que a filosofia racionalista possa ser um corpo unificado (sic), concentrando suas diversas descobertas apriorísticas.
Entender o conhecimento como categoria da ação também permite o entendimento das leis da lógica como proposições sintéticas a priori, verdadeiras, sobre a realidade, e não meras arbitrariedades analíticas, como propõe o empirismo. Agora também são entendidas tanto como leis do pensamento, quanto leis da realidade material.
Por fim, o reconhecimento do caráter praxeológico do conhecimento, por reivindicar a validade do sintético a priori, implica em um dualismo epistemológico [7]. Separa a epistemologia em dois campos de pesquisa, com métodos de tratamento e análise fundamental e categoricamente distintos, teleológico [8] para ações e causal para fenômenos naturais, ou melhor, para não-ações. O dualismo epistemológico passa a apoiar-se na praxeologia, enquanto a teleologia em geral, pode ser delimitada por ela.
Causalidade, constância, tempo e ação
Demonstrada a inviabilidade do empirismo no estudo das ações, por implodir em contradição, e demonstrando a existência do conhecimento a priori, percebe-se que pouco pode ser observado sobre as ações, uma vez que (1) as observações só mostram a existência movimentos corporais, não de intencionalidade, (2) a metodologia empírica não se encaixa sobre as ações e (3) as categorias da ação são conhecidas a priori. As ações devem ser entendidas por dedução.
Sobre o último ponto, não se pode conhecer a priori sobre ações em específico, porém, por serem ações, conhecimentos a priori podem explicar seu funcionamento. Ações não podem ser dadas como governadas por causas, como ocorre com fenômenos naturais. Porém, qualquer ação pressupõe a categoria da causalidade, incluindo uma invariável constância das causas eficientes no tempo – princípio da constância. É a causalidade, sendo categoria da ação, que permite agir intencionalmente. A ação não é governada por causalidade, mas a pressupõe, buscando gerá-la.
Agir significa interferir em um momento anterior, a fim de produzir um resultado posterior. Não pressupondo esses dois fatores (causalidade e constância), não teríamos motivos para uma ação intencional. Nas palavras de Hoppe, “causalidade é a ideia que existem causas eficientes intemporais, constantes que permitem que alguém projete observações passadas relativas a relação de eventos no futuro, e é algo que não possui base de observação alguma (uma pessoa não pode observar o elo entre observações)”. Em outras palavras, enquanto a ação é uma interferência no curso natural para um resultado futuro, a causalidade é o que permite que, antes de agir, projete-se um resultado futuro. Sem a causalidade, por exemplo, não teria o porquê chutar uma bola, de um determinado ângulo, na intenção que ela fosse para a direita, sem pressupor que ela realmente fosse para a direita, ceteris paribus, daquele ângulo, em vez de chutar para direções aleatórias. O chute sequer existiria na intenção de mover a bola.
Percebe-se então que o tempo também é implícito na causalidade, ao afirmar que a ação é uma interferência em um momento anterior, para produzir um resultado posterior. Desta forma, o tempo é explicitado como algo indiretamente implícito na ação. A distinção entre momentos (ou eventos) anteriores, como causas, e posteriores, como efeitos; explicita a noção de tempo contida na ação. Sendo categorias implícitas nos agentes, nada disso pode ser percebido pela observação. Como concluiu Mises: a causalidade é um pré-requisito para agir.
Ações não podem ser tratadas como meros fenômenos da natureza! Hoppe demonstra que a ação mostra que a realidade é estruturada de forma causal. A ação não requer causa e não é estruturada causalmente – ou seja, um evento A, não é o causador determinístico de uma ação B, como ocorre nas ciências naturais. Por outro lado, tudo o que não é uma ação, na matéria pode ser estruturado de forma causal, não possui nada a priori de informativo sobre isso.
Categorias apriorísticas da ação
Há mais fatores além da causalidade, conhecimento, intencionalidade e noção de tempo nas ações. As ações pressupõem valores. Valores não podem ser conhecidos através da experiência, uma vez que não existem valores observáveis, objetivos, nem átomos de valores. Eles são subjetivos – como desde antes de Mises, Menger havia percebido – e só existem porque há um agente atribuindo-os. Toda ação persegue um objetivo, interferindo nos eventos buscando um resultado. No mínimo, a ação busca se adequar a algo que não pode ser evitado. O objetivo da ação, tratamos como fim, que é sempre sair de um desconforto para outro estágio – necessariamente – mais desejável.
O fato da causa de uma ação vir de um agente pressupõe e explicita a existência do valor. Só assim este pode ser descoberto. Outro fator peculiar que prova um valor atribuído para cada ação e que, ao mesmo tempo, revela que esse é maior que os atribuídos à outras possibilidades de ação, é justamente a ação feita dentro da realidade em que não podemos fazer tudo ao mesmo tempo, i.e., alcançar todos os fins simultaneamente. Ao decidirmos por agir de certa maneira, a fim de alcançar um objetivo A, demonstra-se que, ao menos no início da ação, esse objetivo A é mais valorizado que os objetivo B, C, D, etc. disponíveis naquele momento, i.e., possíveis de ser alcançados. Caso contrário, agir-se-ia diferente, em busca de um fim diferente.
Toda ação requer meios para um fim. Ações demandam, mesmo que no mínimo, tempo e o uso do corpo. O uso de meios é provado pela interferência (uma interferência na natureza, por exemplo), o que inclui a decisão de não interferir. Se fins não demandassem meios, não os usaríamos, pois, a aquisição de bens seria maior sem ter de despender outros bens. Agir é buscar passar de um momento anterior com certo estado de satisfação, através de um resultado desejado, para um momento posterior com um maior estado de satisfação. Caso contrário, não se agiria.
Se usamos meios para alcançar fins valorizados, percebemos que os meios possuem valores em relação aos fins que eles podem nos proporcionar. Ações só podem ser realizadas em sequência, portanto, agir requer escolher. Assim, ações também incluem em seus custos o valor das outras ações possíveis que foram abdicadas.
Elucidando o que foi dito, abdicar de outras ações é um meio, direto ou indireto, para que uma ação seja realizada. Exatamente pelo fato dessas outras ações, que buscariam outros fins, terem um valor – o valor atribuído a esses fins abdicados -, esse valor dispensado delas se soma ao custo da ação escolhida para ser realizada. Os próprios meios, uma vez que serão destruídos (ou desgastados) com o processo de agir sendo realizado, se incluem nos custos da ação. Isto porque os meios despendidos não estarão disponíveis para outros fins.
A satisfação dada pelo fim que se espera obter ao agir é a expectativa de lucro. Ao agir também estaremos assombrados pela possibilidade de um prejuízo. Quando o fim buscado ao agir, pelo contrário da expectativa do agente, passa a custar mais que o primariamente projetado, ocorre o prejuízo.
Mesmo que toda ação vise lucro, por nosso conhecimento ser limitado, além do fato de valores serem subjetivos; estes podem mudar por diversos motivos. Erros na projeção inicial – da expectativa sobre a satisfação a ser obtida – ao realizar uma ação podem ocorrer. Essas são categorias (meios, fins, lucros, valores, custos, etc.) da ação que estão sistematicamente implícitas no conceito do que é agir, nenhuma delas derivadas da experiência. Interpretar experiências nessa categoria só pode ser feito a partir de um agente que saiba o significado de agir.
O legado econômico de Ludwig Von Mises.
Revisando e aplicando os conceitos apresentados.
As ações que não puderem ser sistematicamente previstas por observações, nem entendidas fundamentalmente sobre seu funcionamento por experiências empíricas.
O a priori da ação é a reivindicação que os seres humanos agem e manifestam um comportamento proposital. Não derivada de observações, tal afirmação é um axioma autoevidente. É o fato de através dela aplicarmos nossa intencionalidade que demonstra a necessidade de seu entendimento por dedução através da reflexão sobre nós mesmos como seres racionais. Todas as categorias da ação (valores, meios, fins, custos, lucro, causalidade, tempo, etc.) são conhecidas a priori.
Essa autoevidência não se dá em sentido físico, nem psicológico, mas na validade da proposição pressuposta na tentativa de sua negação. Ao tentarmos alegar que não agimos, pressupomos a ação e todas suas categorias apresentadas – sintéticas a priori.
- Ações são o uso de meios para alcançar fins que, na expectativa do agente, os livrarão de um desconforto, passando-o para um estágio de satisfação maior. Nunca igual ou menor. Caso contrário, não haveria ação.
- Em toda ação um agente busca alcançar um objetivo que é mais valorizado que qualquer outra ação que possa realizar ao início dessa ação realizada. Caso contrário, agiria diferente.
- Em toda ação um agente deve interferir – ou em determinadas situações deixar de interferir, o que seria uma forma de interferência – em um momento anterior para produzir um resultado posterior. Essas interferências implicam o uso de meios escassos.
- Os meios para alcançar fins também possuem seus próprios valores, derivados do valor dos fins que podem alcançar.
- Toda ação resulta em uma escolha, a de dispensar as outras ações possíveis de serem realizadas naquele momento, uma vez que os meios direcionados para uma ação não estarão disponíveis para outros cursos de ação.
- Toda ação inclui os custos de deixar outras ações de lado, uma vez que se renuncia ao valor agregado, os objetivos que não virão a ser realizados, além dos meios despendidos.
- Quando ação é iniciada, seu objetivo final deve ser capaz de gerar um lucro psíquico, que por sua vez seria um valor maior que o renunciado. Ao mesmo tempo, toda ação é ameaçada por um prejuízo, uma vez que se pode perceber um erro, e que está a buscar um valor menor que o projetado inicialmente. Um prejuízo seria um valor inferior ao que foi abdicado.
Brevemente, sobre ação, previsão e construção
Ação deve ser estudada como um comportamento significativo direcionado para um propósito. As ações devem ser identificadas pelo entendimento refletivo e não como eventos categorizados causalmente – “se A, então B” -, mas conectados dentro de uma estrutura categórica de meios e fins.
Não se pode saber a priori quais são (ou serão) os valores, escolhas e custos específicos de um agente, ou seja, sobre as ações específicas. Assim como não é possível saber a priori seu curso específico. São todos conhecimentos a posteriori. Devem ser aplicados de modo reconstrutivo ou histórico, fornecendo explicações sem influências categóricas em ações futuras. Tais explicações e reconstruções devem ser delimitadas pelas categorias praxeológicas da ação. Uma ação específica a ser realizada levará em consideração seu conhecimento sobre a realidade observável e sobre as ações de outros agentes.
Os limitantes praxeológicos, que informam de fato sobre as ações, tendem a fazer com que as previsões e interpretações – históricas e sociológicas – formadas limitadas pela praxeologia sejam, em média, mais certeiras do que previsões que não a levam em consideração. As disciplinas históricas devem obedecer às leis da praxeologia. Nunca tentar buscar sua refutação.
Como formular proposições econômicas
Mises, assim, construiu sua ciência econômica. As proposições econômicas devem ser baseadas nos conceitos apriorísticos de ação. Mais precisamente, implicando que elas precisam ser também delimitadas na praxeologia, como as previsões, conhecimento, reconstruções e a epistemologia.
Mises voltou sua atenção da área econômica para o fato que não só seres humanos agem, mas que a economia é feita dessas mesmas ações humanas. E se as ações são entendidas pela praxeologia, o mesmo deve ocorrer com a economia em si. Portanto, as proposições econômicas válidas devem ser sintéticas a priori, não se baseando em observações e sendo autoevidentes. Devem ser deduções lógicas que encontram-se em conformidade com as leis da praxeologia.
As proposições econômicas devem possuir:
- Entendimento do significado da ação e suas categorias.
- Uma situação (ou alteração de uma situação) identificada e sua interpretação, mantendo-se em concordância e pressupondo todas as categorias da ação.
- Dedução lógica que segue uma ação executada dentro desse cenário posto; ou das consequências resultantes para o agente em específico quando essa situação é modificada de maneira específica, i.e., deduzir as consequências que devem ocorrer para o agente, dessa situação ou de sua alteração.
Dadas essas pré-condições, Mises afirma que, desde que não ocorra erro algum nas deduções feitas, elas devem ser válidas a priori. Em um mundo hipotético, devem ser válidas adequando-se a esse mundo hipotético. Se baseada no mundo real, as proposições devem ser válidas para o mundo real e nossa realidade
Essa é a ideia de ciência econômica concebida por Mises, como nos traz Hans-Hermann Hoppe, obedecendo a praxeologia. Leis da troca, utilidade marginal, associação ricardiana, controles de preços, teoria quantitativa da moeda, dentre outras, podem ser derivados e/ou avaliados a partir do axioma da ação. E exatamente as condições apriorísticas apresentadas nessa série que invalidam o tratamento da ciência econômica como uma ciência natural, determinada de forma causal.
Agradecimentos
Agradeço, uma vez mais, ao Nicholas Ferreira pela boa vontade e revisão do texto; além da ajuda com o uso de melhores termos para a elucidação dos conceitos kantianos e praxeológicos, dado o difícil vocabulário usado por Kant e Hoppe.
Por fim, também agradeço ao Paulo Demchuk pela revisão do texto.
Notas
[1]: Vale destacar que me basearei inteiramente em Hoppe neste artigo.
[2]: Ver mais adiante
[3]: Pois, por ele próprio, só existem essas duas categorias
[4]: Ou conforme o espaço neutro, caso o mesmo experimento seja realizado ao mesmo tempo, em lugares diferentes.
[5]: Não se deve confundir os conceitos de “empírico” e “empirismo”.
[6]: Sintéticos a priori podem ser ilustrados na realidade, como podem não ser, por motivos diversos de interferência externa. Seu valor-verdade independe da experiência, pois se atrela exclusivamente a validade de suas premissas e o seguimento de suas conclusões lógicas. Deve-se ter esses conceitos em mente sempre que aqui for citado “não sujeito a verificação”, em relação a um sintético a priori.
[7]: Há outros conceitos atribuídos sobre o termo “dualismo epistemológico”. Peço que considerem o descrito em seguida.
[8]: Existem diversas classificações e divisões de teleologia atualmente. Aqui me refiro ao conceito de geral do estudo refletivo da ação enquanto si mesma, como trata a praxeologia, por exemplo.
Leituras Relacionadas
Hoppe, H. H. Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo.
Hoppe, H. H. A Ciência Econômica e o Método Austríaco.
Mises, L. v. Ação Humana, São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010.
Kant, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os pensadores).