por KEN BANSHO
A obra “Elementos do Estado” foi escrita por um francês anti-franceses. Explico-me: os teóricos do Estado e do direito público europeu, sobretudo o francês, foram diretamente influenciados pelos “filósofos de gabinete” – conforme pecha de J. P. Galvão de Sousa – da Revolução Francesa e pelos posteriores simpatizantes da democracia jacobina.
Afastado desta tradição, Léon Duguit redige sua obra em sentido contrário aos abstracionismos do século das luzes. Logo de início, o decano de Bordéus rejeita a tese que compreende o Estado como uma “pessoa coletiva” e soberana; como se fosse dotado de consciência e vontade própria, dispondo de poderes incondicionais para determinar isto ou aqui.
Entendo a posição de Duguit como corretíssima. Ninguém sai à rua e encontra o “Estado” para cumprimenta-lo e questionar suas vontades, desejos e propósitos. Imaginar o Estado como um ente concreto, semelhante ao indivíduo, não passa de uma ficção; uma simples idéia humana distante da realidade e próxima ao coração dos ideólogos.
A presença histórica do Estado revela seus elementos imprescindíveis (1). Por exemplo, nunca existiu um Estado sem uma coletividade ou agrupamento humano que o precedesse; tampouco a história nos apontou algum que não diferenciasse claramente governantes e governados. E esta distinção indica, por fim, ao mais essencial de todos seus elementos: a existência de uma força preponderante; uma força maior em exercício. Tratemos, pois, destes elementos na ordem disposta pelo autor.
Quando Duguit fala sobre o elemento social no qual se forma o Estado, ele tem como referência a Nação, que nada mais é do que o resultado natural da ascensão de grupos sociais menores, como a família e a cidade. O desenvolvimento desses agrupamentos se dá pela expansão das necessidades humanas, que encontram satisfação nas aptidões de seus semelhantes.
A Nação mantém-se íntegra e coesa por conta daquilo que Duguit denomina de “solidariedade nacional”. A língua, a religião, os limites geográficos, os costumes e as autoridades sociais são fatores vinculantes desta unidade nacional. Embora estes sejam elementos importantes, o “sentimento comum” compartilhado pela Nação (2) é construído principalmente pela memória de seu povo: suas aspirações e tradições; as recordações das batalhas gloriosas, dos triunfos e também dos sofrimentos advindos das perdas e derrotas.
É digno de nota o testemunho de Duguit sobre seu tempo. Anotou o francês a respeito da decadência e desintegração da família. O referido instituto milenar, enquanto grupo social, estava perdendo seu lugar ante a ascensão das corporações profissionais, representantes dos interesses relativos ao comércio, indústria, artes e literatura. Provavelmente, Léon Duguit estava descrevendo a formação de novos grupo sociais, os quais seriam utilizados como modelo para a criação doutrinária do Estado Corporativo, posteriormente incorporado pelo Fascismo Italiano.
Nesta Nação, há nítida distinção entre aqueles que governam e aqueles que são governados. Se um grupo exerce uma ação e outro apenas assiste passivamente, torna-se inegável o prevalecimento de uma vontade sob outra. Dizer que a vontade de alguém encontra-se revestida pela autoridade do Poder Público implica em reconhecer que esta pessoa pode formular ordens aos seus pares.
Em tempo: Léon Duguit redige em boa prosa uma crítica forte sobre a noção de “Poder Público”, tornando-se apropriado, para fins de análise, a citação direta do trecho.
“O poder público é uma ficção; é uma noção sem valor que importa banir de toda construção positiva do direito público. Como acabamos de ver, essa negação é consequência da negação da personalidade da Nação e da vontade nacional. Não se deve ter medo das palavras; cumpre afirmar nitidamente é uma coisa sem realidade, que essa expressão é empregada pelas pessoas detentoras do poder, como maneira cômoda de impor esse poder, fazendo acreditar aos outros que é um poder de direito quando nada mais é do que um poder de fato (3)
Este é um dos trechos pelos quais atribuí a Duguit o título de “francês anti-franceses”. Como se observa, sua rejeição por termos vagos e imprecisos demonstra um esforço pessoal para se rebelar contra as teses abstratas e indeterminadas, que são preenchidos de conteúdo material conforme a conveniência do governante. E mais: despoja as vestes dos pretensos publicistas, que na ânsia de legitimar o poder empregado pelas autoridades do Governo Central, denominam seu exercício de força como “direito” ao invés de trata-lo como mera imposição.
A posição de Duguit lhe trouxe o apelido de “anarquista catedrático”, dado por seu conterrâneo Maurice Haurriou, outro grande nome do direito público. Trata-se de má compreensão. Quando Duguit rejeita a noção de Poder Público, não o faz na tentativa de declarar sua inexistência ou ilegitimidade, apenas esboça o entendimento de que o exercício da força, travestido pela autoridade concedida pelo Poder Público, não é um direito.
Há uma coadunação dos pressupostos para afastar o exercício do poder como direito. O Estado não é titular do direito de exercer a força porque não é uma pessoa; não há uma personalidade intitulada de “Estado”. Consequentemente, não possível atribuir-lhe direitos. Por outro lado, o governante não exerce seu domínio porque tem “direito”, mas em vista da sua força moral ou material, capaz de constranger os demais. Por isso inexistem distinções qualitativas entre a vontade do governante e a vontade do governado. Existe apenas uma imposição de fato.
Outro ponto importante são os limites para o exercício dessa força. Embora os governantes detenham uma força maior de fato, e não de direito, isto não implica que ela deva ser empregada de maneira desmotivada e arbitrária. Léon Duguit nos traz um critério de legitimidade: a ação do governante deverá se consumar em conformidade com o império da lei. Disse o francês: “Se o direito sem a força se arrisca a ser impotente, a força sem o direito é simplesmente barbaria (4).
Essa é uma tentativa interessante de submeter e regular o poder dos “soberanos” e Leon Duguit não o primeiro, tampouco o último a defendê-lo. Como adepto do direito natural, não posso me manter inerte perante essa tese. A legitimidade das condutas humanas não é dada pela ordem jurídica positiva, mas pela lei natural.
Pouco importa se versamos sobre súditos ou governantes, pois a reta razão humana indica quais são os fins transcendentes do homem. E diante de tais fins objetivos, que podem ou não estar previstos em lei, agir em sentido contrário a eles expressa uma violação da ordem moral; uma corrupção e degradação do homem.
Pressupor que as leis são necessariamente éticas é uma vã esperança que contaminou antigos discípulos e ainda arremata prosélitos; detentores de uma visão rasa da experiência jurídica. Embora evidentemente tenha méritos, Léon Duguit situa-se entre os corifeus desta estirpe.
Para encerrar o texto, trato da finalidade do Estado. A força empregada pelos governantes, além de submeter-se às leis, deve fiscalizar e organizar o funcionamento dos serviços públicos. É curioso ver a realização de “serviços públicos” como o fim último do Estado. Normalmente fala-se em “bem comum” ou “vontade geral”. Confesso que os limites da obra não me permitem indicar as razões desta escolha.
Sabendo da vagueza da expressão, Léon Duguit tentou delimitar o conceito de serviço público, que sintetizo da seguinte forma: I. Atividade obrigatória do governante, que emprega a força para assegurá-la; II. Fim dotado de densidade axiológica, haja vista que todo ato do governante será desprovido de valor quando procurar outro fim que não o serviço público; III. Atividade que não é de competência exclusiva do Estado, podendo os particulares exercê-la livremente.
Como exemplos de tais serviços públicos, poder-se-ia citar os três principais: a defesa da Nação contra eventuais abusos de poderes estrangeiros; o controle e proteção da Nação (perspectiva interna) por meio do serviço de polícia; e, por fim, o serviço da justiça.
Ainda sobre o tema, Léon Duguit incorre em outro erro. Desta vez, o deslize beira o absurdo. Acreditava que a ampliação dos serviços públicos não implicaria, necessariamente, no aumento e centralização do poder nas mãos do Estado. Ora, se tais serviços seriam realizados pelo Estado, sua expansão necessitaria de mais receitas, o que acarretaria no gerenciamento e tributação, ambos indevidos, dos particulares.
Se o Estado, num primeiro momento, toma uma parcela do rendimento dos indivíduos e, posteriormente, intervém de maneira mais enérgica a fim de arrecadar ainda mais, isso só pode significar o aumento de seu poder e de sua intromissão na vida privada.
Notas de rodapé:
(1) Diferentemente de outros teóricos do Estado, Léon Duguit entende que o território não é condição indispensável ao ponto de figurar como elemento essencial do Estado. Cf. DUGUIT, Léon. Elementos do Estado. Tradução de Eduardo Salgueiro. Lisboa: Editorial Inquérito LTDA. p. 45.
(2) DUGUIT faz uma observação interessante: nem todo indivíduo subordinado ao governo integra a nação. Por exemplo, alguns sujeitos poderiam estar subordinados ao poder público francês mas sem fazerem parte da Nação francesa.
(3) DUGUIT, Léon. Elementos do Estado. Tradução de Eduardo Salgueiro. Lisboa: Editorial Inquérito LTDA. p. 36.
(4) DUGUIT, Léon. Elementos do Estado. Tradução de Eduardo Salgueiro. Lisboa: Editorial Inquérito LTDA. p. 45.