por PAULO DEMCHUK
O totalitarismo é um sistema em que o estado não reconhece limites à própria autoridade e se esforça para regular todos os aspectos da vida pública e privada, sempre que possível fazendo uso do culto à personalidade estatista, controle da economia, regulação e restrição de expressão, vigilância em massa, a fim de dirigir a sociedade. Esse também é o sentido para o termo totalitarismo judiciário.
O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente, sempre me diz Lord Acton. A decisão que suspendeu o serviço do whatsapp no brasil é demonstrativo do totalitarismo próprio do exercício do poder. A realidade nos prova diariamente que o estado é uma entidade que não atua a bem do serviço público ou do bem comum.
Uma das regras básicas do judiciário é a aplicação de normas somente aos outros, e não às próprias autoridades judiciárias. Nesse mundo particular, a legislação é um argumento meramente retórico que se adapta à conveniência do julgador. Exemplo que ocorreu em julho de 2016 quando a 2ª Vara Criminal de Duque de Caxias, no Inquérito Policial 062-00164/2016, determinou a suspensão do serviço de whatsapp em todo o território brasileiro.
A decisão que suspendeu o serviço do whatsapp contém dezenas de problemas jurídicos, lógicos e culturais. Sobressai o fato do fundamento da decisão estar sustentada num “argumento de autoridade”, ou seja, sustentada na força coercitiva estatal e sem qualquer limitação jurídica ou apuro intelectual.
Por exemplo, é contraditório que a magistrada tenha argumentado ter havido deszelo da empresa por não responder ao juízo em língua nativa, mas ela mesma cometa erros crassos de português. É contraditório que se alegue que as empresas atuem globalmente, mas que tenham concebido o criptografia para embaçar ou impedir uma investigação em Duque de Caxias, se é que sabem onde a cidade esteja. É contraditório que se tenha afirmado que a criptografia impeça a investigação, mas existam outros meios de prova em curso nos autos. Aliás, sejamos francos, é completamente falso que o whatsapp tenha impedido a investigação criminal, como consta da decisão, de um lado, e de outro lado é ilícita a suspensão do serviço de whatsapp sem que a decisão dê os fundamentos jurídicos para isso. Em nenhum local da decisão arrolou-se a lei que permite suspender o whatsapp.
A distopia totalitária judiciária comumente viola leis ou as distorce para obrigar terceiros a cumprir ordens usualmente ilícitas. Elencamos abaixo alguns dos problemas da decisão que bloqueou o whatsapp.
1. Erros básicos de português.
A magistrada alega ter havido deszelo da empresa que presta serviço de whatsapp ao não redigir suas comunicações em língua portuguesa. Entretanto, a mesma magistrada também não tem zelo algum, nem apreço, pelo português, tamanha quantidade de erros crassos que comete. A crítica do deszelo só vale para a empresa, não para a magistrada.
Exemplos –– 1.1. “todas as operadoras de telefonia, provedores e afins, ao receberem ofícios judiciais”. – 1.2. “A falta ou a negativa de informação por parte da empresa, deixando de atender a uma determinação judicial, impede aos órgãos de persecução de apurarem os ilícitos e alcançarem os autores dos crimes praticados, constituindo-se a recusa no fornecimento dos dados mera estratégia da empresa a fim de procrastinar e até descumprir a ordem judicial, sob o pálio de impossibilidades técnicas.” – 1.3. – “medidas estas que os responsáveis alegam não serem passíveis de cumprimento.”
2. Declaração falsa na decisão.
O Facebook e o Whatsapp são empresas globais que atendem milhões de pessoas, e é provável que tenham ido ao Google para saber onde fica Duque de Caxias. Alegar que tais empresas tenham impedido ou embaraçado (Lei 12.850/2013, art. 2º, §1º) investigação criminal em Duque de Caxias tão somente pelo fato de não responderem alguma exigência da magistrada espelha a falsidade e a manipulação dos fatos e dos argumentos jurídicos em decisões judiciais. A criptografia não foi concebida para embaçar a investigação, a criptografia integra atualmente o serviço prestado. Aliás, a falsidade judiciária não é exceção, é extremamente comum o uso do argumento jurídico apenas como meio de legitimação e de manipulação do poder segundo um interesse subjetivo de quem determina o cumprimento da ordem. Além disso, a decisão explicitamente omite quais os outros meios de prova que são empregados no processo, ainda que toda investigação criminal ocorra com múltiplos meios de prova. Como declara que os crimes estão sendo investigados, não é a impossibilidade técnica de eliminação da criptografia que a impede ou embaraça.
Exemplo — “Em se tratando de inquérito policial que apura suposta prática do delito de organização criminosa voltada ao cometimento de diversos crimes, a conduta do senhor representante legal do Facebook Brasil constitui, em tese, crime previsto no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 12850/2013”. — . “A empresa alega, sempre, que não cumpre a ordem judicial por impossibilidades técnicas, no entanto quer ter acesso aos autos e à decisão judicial, tomando ciência dos supostos crimes investigados, da pessoa dos indiciados e demais detalhes da investigação.” — “A falta ou a negativa de informação por parte da empresa, deixando de atender a uma determinação judicial, impede aos órgãos de persecução de apurarem os ilícitos e alcançarem os autores dos crimes praticados, constituindo-se a recusa no fornecimento dos dados mera estratégia da empresa a fim de procrastinar e até descumprir a ordem judicial, sob o pálio de impossibilidades técnicas.”
3. Argumentação moral.
O nível de argumentação moral é baixíssimo e próximo ao irracional. Exemplifiquemos que alguém seja chamado de “canalha” ou “hipócrita”. Naturalmente, não há prova material que responda ou que se contraponha a esse xingamento dado que isso não é algo aferível objetivamente. A argumentação moral é um dado subjetivo que respeita à pessoa que a afirma e não possui relação objetiva com aquele a quem o xingamento é endereçado. Essa é a razão pela qual decisões, especialmente no âmbito penal, devem ser objetivas, devem estar estruturadas em fatos e em provas. É um erro grave sustentar decisão apoiada em argumentos morais, além de uma tentativa de impor a culpa pela diminuição de valor do outro contra quem o argumento é lançado.
Exemplo — “tratando o país como uma “republiqueta” com a qual parece estar acostumada a tratar. Duvida esta magistrada que em seu país de origem uma autoridade judicial, ou qualquer outra autoridade, seja tratada com tal deszelo”.
4. Inexistência de fundamento legal para suspensão.
A decisão determina a suspensão do Whatsapp, mas não aponta qual artigo de lei dá suporte a essa ordem. Isso é nitidamente ilegal, em tese o princípio da legalidade está em vigor. Ou seja, todos (e não apenas as autoridades) estão submetidos à legalidade, algo que a decisão não respeito. Além disso, a ausência de discriminação do dispositivo legal demonstra a ausência de fundamentação da decisão neste ponto específico. É obrigatório que uma decisão aponte a lei que a sustenta, especialmente quando voltada perante terceiro que não faz parte do processo. Por isso, a decisão é nula.
Exemplo — “3. Oficie-se à EMBRATEL, ANATEL, bem como a todas as operadoras de telefonia celular, a fim de que providenciem, imediatamente, a suspensão do serviço do aplicativo Whatsapp em todas as operadoras de telefonia, até que a ordem judicial seja efetivamente cumprida pela empresa Facebook, sob as penas da Lei;”
5. Penalidade à autoridade que atuou fora da lei.
Ao atuar, o magistrado está obrigado a seguir os procedimentos de lei, mas a decisão não respeita as leis que ela mesma cita, em especial a legislação do marco civil. Em especial, note-se que inexiste previsão normativa para desabilitação da chave de criptografia, mas estejam certos, a autoridade judiciária que atua fora da lei, esta não sofrerá qualquer sorte de punição.
Exemplo — “Prevê, nesse sentido, a Lei 12965/2014 (Marco Civil da Internet), que é direito do usuário do serviço: Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: III – inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial; E o artigo 10º da mesma Lei dispõe sobre a proteção dos registros das comunicações privadas: Art. 10. A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. § 1º O provedor responsável pela guarda somente será obrigado a disponibilizar os registros mencionados no caput, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou a outras informações que possam contribuir para a identificação do usuário ou do terminal, mediante ordem judicial, na forma do disposto na Seção IV deste Capítulo, respeitado o disposto no art. 7º.” . — . “o Juízo requer, apenas, a desabilitação da chave de criptografia”.
6. Desnecessidade de suspensão do serviço, pois há outros meios para obtenção da prova.
A suspensão do Whatsapp não beneficia rigorosamente ninguém, não beneficia os consumidores que fazem uso do serviço, não beneficia o judiciário, e os criminosos podem usar outros serviços de comunicação, todos eles também serviços criptografados. Aliás, atualmente, o comum é que serviços de dados sejam criptografados. O que somente denota de um lado a inutilidade da suspensão para fins penais e, de outro lado, a cultura do controle da sociedade pela autoridade.
Exemplo — “1. Oficie-se à Autoridade Policial, com cópias integrais da presente, a fim de que seja instaurado procedimento contra o senhor representante legal das empresas Facebook Serviços Online do Brasil Ltda, pela suposta prática do crime previsto no artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei 12850/2013; 2. Determino a imposição de multa diária no valor de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) até o efetivo cumprimento da medida de interceptação do fluxo de dados do Whatsapp (na forma da decisão em separado), com fulcro no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil c/c artigo 3º, do Código de Processo Penal. Intime-se para pagamento o senhor representante legal da empresa Facebook Serviços Online do Brasil Ltda; 3. Oficie-se à EMBRATEL, ANATEL, bem como a todas as operadoras de telefonia celular, a fim de que providenciem, imediatamente, a suspensão do serviço do aplicativo Whatsapp em todas as operadoras de telefonia, até que a ordem judicial seja efetivamente cumprida pela empresa Facebook, sob as penas da Lei; 4. As medidas ora cominadas deverão ser cumpridas pela autoridade policial da 62ª DP ou por agentes especialmente designados pela mesma ou pela Chefia da Polícia Civil do Rio de Janeiro;”
7. O controle social pela autoridade.
Comecemos com o exemplo do caso do FBI que solicitou à Apple a quebra do código de segurança de um telefone. A apple se recusou a cumprir o pedido. Em seguida, e o FBI contratou outra empresa que detinha tecnologia para concluir a investigação sem que sequer houvesse ação ajuizada. Isso denota que tecnologia não tem dono e pode ser acessada por quem queira a depender apenas da capacidade técnica. Tanto que o whatsapp contratou uma empresa para desenvolver um sistema de criptografia.
Para desabilitar a chave de criptografia não era necessário obrigar a entrega de algum código ou desbloqueio do sistema, basta contratar uma empresa que faça esse serviço, na mesma medida em que o whatsapp contratou uma empresa para implantar o serviço. A desabilitação da chave de criptografia exigia inteligência, e não submissão ao poder totalitário estatal.
Exemplo — “o Juízo requer, apenas, a desabilitação da chave de criptografia”.
8. Ausência de limites estatais para invadir a vida privada.
A vida privada está protegida pela constituição federal, entretanto, o descumprimento da constituição pelas as autoridades é uma regra. Para isso, basta acompanhar um julgamento do STF. Um caso que ficou famoso foi o do ministro Barroso que mentiu propositalmente em seu voto para alterar o rito do impeachment de Dilma Rousseff que transcorria na Câmara dos Deputados. Não há nada de incomum, ao contrário, na autoridade judiciária falsear os fatos e argumentos em decisões para impor sua vontade aos demais, o que também se nota da decisão que suspendeu o serviço do Whatsapp. Regras constitucionais não possuem significado normativo para autoridades judiciárias, pois são apenas um conjunto de palavras cujo valor é descartado imediatamente quando necessário. Afinal, segundo autoridade, a proteção da vida privada pela criptografia é só um meio de permitir cometimento de práticas criminosas.
Exemplo — “Há de se considerar, porém, que a codificação criptografada imposta às conversações online pelo Whatsapp não pode servir de escudo para práticas criminosas que, com absurda frequência, se desenvolvem através de conversas, trocas de imagens e vídeos compartilhados no aplicativo”.
9. Whatsapp presta serviço de interesse público, mas não é serviço estatal.
Segundo o totalitarismo judicial, interesse público é o interesse estatal. Isso é sintomático na medida em que o Whatsapp presta um serviço de interesse público não estatal. Evidencia-se que o conflito não é relativo ao interesse público, mas relativo à força estatal contra a inventividade e a riqueza uma empresa, em que o estado quer ter proeminência normativa em relação à atuação da empresa. Para a autoridade judiciária, o serviço de interesse público não possui o mesmo valor que o serviço judicial.
Exemplo — “Não se admite a justificativa da impossibilidade técnica para atender. A empresa Whatsapp Inc. é uma multinacional que precisa se adequar ao interesse público, pois os investigados estão deixando de falar ao telefone o que interessa à investigação, para somente se comunicar pelo aplicativo”. — . “Ambas as empresas prosseguem oferecendo seus serviços no BRASIL, explorando atividades amplamente lucrativas, sendo notória a aquisição bilionária da empresa WhatsApp Inc. pela empresa Facebook, em cerca de US$ 22 bilhões, em função do aumento no valor das ações do Facebook nos últimos meses.”
10. O estado não cumpre seus deveres.
O poder judiciário é um fracasso no cumprimento de suas mais básicas funções. Sem autocrítica, o que lhe resta para evitar olhar os próprios erros é espezinhar outros que não possuem relação com os deveres das autoridades judiciárias. O poder judiciário descumpre suas funções, descumpre-as sempre, todos os dias, e sobrevive de imputar responsabilidade aos demais. Exemplificamos, desconhecemos um único magistrado que cumpra os prazos que lhes sejam impostos pelos códigos de processo. As decisões das autoridades judiciárias são sempre intempestivas. Faça, meu caro leitor, uma pesquisa, pergunte a algum advogado próximo se ele já viu algum magistrado cumprir os prazos a ele determinados pelo código de processo.
Exemplo — “Neste sentido, os representantes do aplicativo Whatsapp nada fazem para cumprimento efetivo da ordem judicial”.